quarta-feira, 4 de outubro de 2017

E-norma é tema do segundo capítulo de nova obra


Será lançado, no próximo dia 18 de outubro,  no TST, em Brasília, o livro Princípios do processo em meio reticular-eletrônico.  A edição é da LTr Editora.

O organizador é o Ministro Cláudio Brandão e os coordenadores são os juízes Fabiano Coelho de Souza e Maximiliano Pereira de Carvalho, ambos com excelentes artigos na obra. O autores são conhecidos estudiosos brasileiros do processo eletrônico  e os artigos transitam pela temática prevalente deste novo campo da ciência jurídica: o do e-processo.

Tenho a honra de participar da obra para a qual escrevi o capítulo 2: Que é isto, a e-norma? Elementos para a teoria geral do e-Direito. 

Trata-se da melhor abordagem sistemática que fiz, até hoje, sobre a e-norma.

Resumo do capítulo:

"Este estudo afirma que, com as possibilidades abertas pela automação via software, o direito viu emergir uma nova espécie de norma jurídica. Com disposição empírico-indutiva e transdisciplinar, o estudo toma axiomaticamente a existência atual da norma que se aplica por si mesma (norma automatizada ou e-norma) e desenvolve um esforço para falsear (Popper) a aplicação dos atributos das regras para o novo tipo normativo.  Assim fundamenta a tese da emergência, por diferenciação tecnologicamente induzida, da e-norma. 

A existência da e-norma desatualiza o arcabouço teórico do Direito, instala verdadeira e paradigmática anomalia (Kuhn) e torna necessários ajustes.  O Direito sem as e-normas é, na atualidade, apenas meio Direito. 

As e-normas diferenciam-se por inúmeros atributos: virtualidade, autoaplicabilidade, transdisciplinaridade, modus faciendi, ininterpretabilidade (exprimem diretamente sentidos não sendo proposições lingüísticas interpretáveis), trivialidade (autoaplicam-se submetidas à causalidade), pseudocontextualidade (baixa e mediata aderência à situação real, baixa situacionalidade - Günther), opacidade, instanciabilidade restrita (são objetivações tecnológicas de classes legal-propositivas) e algoritmicidade restrita (seus enunciados são tecnológicos para máquinas e não para humanos).  

A emergência da e-norma, exatamente como acontece com todos os fenômenos similares, deu-se na ausência de mecanismos jurídicos prévios e aptos a  lhe garantir validade, legitimidade e transparência."

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A Alemanha do 7x1 e a eNorma: riscos do eProcesso

No virtual, entre e o dado e o leitor,  sempre existe um programa de computador (software).
Vê-se o que o programa deixa ver!

No tempo da copa, publiquei post na primeira vez em que a eNorma entrou em campo para decidir se a bola havia entrado ou não. Jogavam França e Honduras e o computador decidiu: a bola entrara.

Dias atrás, o mundo ficou escandalizado com a denúncia de que um grande fabricante de automóveis alemão manipulava a exibição dos resultados dos controles de emissão de gases  instalados em seus veículos diesel.

Depois vieram novas revelações que ampliaram a frota que apresentava o problema. E, finalmente, alguém falou claramente que "havia inúmeros softwares feitos para fraudar as informações sobre a emissão de gás dos veículos."

Veja-se bem: não é um aparato de ferro, uma engenhoca posta no interior dos veículos, que mede mal o nível de poluição gerado pelo automóvel após a aplicação dos filtros.  Talvez, até, o sensor técnico (físico/químico) funcione muito bem, obrigado, e gere uma informação altamente confiável, demonstrando a ineficácia dos filtros adotados.

Mas aquele dado, confiável ou não, é "manipulado" no caminho por um "programa de computador" que está incumbido de  exibir o resultado.

Tudo que tem pretensão de ser Direito deve
estar dotado do atributo da transparência!
O que isso tem a ver com o processo dos novos tempos, especialmente com o processo eletrônico? TUDO!

Em artigo de 2012, ao escrever sobre a norma eletrônica ou tecnológica (eNorma), chamei a atenção para o problema que representava um sistema processual a cujos programas ninguém tem acesso, porque mantidos a quatro chaves nas mãos de um grupo seleto de tecnólogos  e juristas.

E escrevi, com rara felicidade, nesses tempos de lei do acesso à informação, que

A transparência não deve ser apenas da informação, mas da ferramenta
 que trata a informação também.

Cheguei a propor a inserção de um inciso, no artigo 5º da CF, enunciando um direito fundamental à transparência tecnológica, com a seguinte redação:

CF, art. 5°, LXXIX - a todos, no âmbito judicial e administrativo, é assegurado o
acesso pleno às normas tecnológicas: transparência tecnológica. 

No mesmo artigo, enunciei três sub-regras voltadas a acabar com o direito secreto com que temos convivido em diferentes áreas (eleitoral, fiscal, tributária, previdenciária, processual). A terceira sub-regra tocava expressamente no ponto:
c) regra da transparência plena: trata-se de explicitar e publicizar, de todas as maneiras possíveis, em linguajar acessível para juristas e para o povo em geral, as decisões tomadas na alínea “b” [EXPLICITAÇÃO DAS REGRAS DE NEGÓCIO QUE SE TRANSFORMAM EM eNORMAS]; a transparência não deve estar voltada para a detecção de erros de codificação do programa, apenas, mas para a promoção dos direitos fundamentais. 
As funções tecnológicas de conteúdo jurídico-normativo (que implantem normas tecnológicas no sistema processual),  serão disponibilizadas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e  juízes entendam, sem prejuízo da exibição em linguagem técnica (os chamados códigos-fonte).   
É tempo de voltar ao artigo!  A indústria automobilística alemã está dando sua contribuição ímpar para o aperfeiçoamento do processo eletrônico e, é claro, chamando a atenção para a necessidade de fundar um novo direito fundamental à transparência tecnológica.

Uma dúvida de última hora: quem pode garantir que não houve um computador, com software alemão, naquela inacreditável contagem de 7x1? Afinal, sete é a conta do... 

sábado, 28 de março de 2015

O artigo 12 do novo CPC (ordem cronológica das sentenças) e a eNorma:

Há pouco tempo, na lista do GEDEL, Alexandre Golin Krames fez, entre outros,  o questionamento adiante. Mereceu poucos retornos. Mas sua indagação é da maior relevância jurídica e, acima de tudo, induz  reflexões em torno do processo eletrônico e da eNorma (norma eletrônica ou tecnológica). 

Após listar o artigo, "art. 12.  Os juízes e os tribunais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão" Krammes fez a seguinte indagação:

"- A ordem cronológica de conclusão deverá ser uma regra de negócio uniforme nos diversos SEPAJs?"

Lembre-se que SEPAJ é a sigla de Sistemas Eletrônicos de Processamento de Ações Judiciais - o SAJ, o eProc, o Provi, o Projudi, o PJe, o PJe-JT.

Ora, o analista de negócio buscava uma resposta que nos faz imergir na questão da norma eletrônica ou tecnológica (eNorma).
O ponto chave aparente:  saber  se a interpretação da lei (do art. 12, no caso) deve ser transformada num algoritmo (um programa ou função) que vai ter exatamente o mesmo comportamento em todos os SEPAJs (considerando-se processos de mesma natureza  - trabalhistas, por exemplo!) ou se cada SEPAJ poderá implementar determinada interpretação.

O juiz poderá escolher? Sim, mas apenas
entre as opções que o programador lhe der!
O ponto chave por trás da indagação, muito mais relevante, parece ser outro.
Essa norma jurídica (que é o sentido do texto a ser adotado pelo programador) tem de ganhar uma expressão tecnológica (a eNorma) para orientar o computador que cuida do processo eletrônico. Como eNorma, ela se autoaplicará (lembre-se que um atributo distintivo da eNorma é a autoaplicação) e, além disso, se autoaplicará deterministicamente (não deonticamente) à situação que se oferecer. 

Assim, mesmo que se elabore um algoritmo da norma muito parametrizado, capaz de absorver distintas visões hermenêuticas do dispositivo, ainda assim, repita-se, o magistrado do caso concreto estará diante de uma camisa de força e com os movimentos limitados. Parâmetros definem espaços pelos quais o usuário pode e deve transitar. 
E quem define tais espaços é o programador e o definidor da regra de negócio, não é o magistrado usuário.

Esse aspecto é extremamente relevante para a TGP e para o juiz.  Vê-se, claramente, que outras instâncias (a definidora das regras de negócio!), por mecanismos não institucionalizados e de baixíssima transparência, estão assumindo papéis até agora reservados aos intérpretes juízes. O Direito já não é, mais, em tais espaços,  o que os juízes disserem que ele é, como afirmavam os realistas. O Direito será o que esses foros resolverem que ele deve ser.
Portanto, "transparência, quer-se transparência" em tais definições. A definição da norma a ser codificada tecnologicamente (interpretação da proposição legislativa) e a sua expressão em linguagem tecnológica precisam ser feitas por mecanismos institucionalizados e transparentes.

quarta-feira, 18 de março de 2015

O processo eletrônico é feito por homens e por agentes automatizados.

1. Acoplamento de sistemas psíquicos (ou de consciência, os homens) e técnicos (máquinas, software)

Os SEPAJ - Sistemas Eletrônicos de Processamento de Ações Judiciais (art. 8º da Lei 11.419/2006) são sistemas técnicos que se acoplam a sistemas psíquicos para fazer o processo eletrônico. Hoje há inúmeros sistemas em utilização:  eProc,  SAJ, PJe, PJe-JT, Projudi etc. 
  
O entendimento desses sistemas técnicos, cujo âmago jurídico é composto de eNormas (normas tecnológicas), e de seu papel,  é fundamental para a teorização do processo de agora em diante.

Todos os sistemas sociais, como é o caso do processo, dependem, para operar, do acoplamento com sistemas psíquicos, isto é, com pessoas - advogados, juízes, servidores etc - , que lhe garantem a base de comunicação para produzirem sua dinâmica autopoiética. Sem pessoas não há sistemas sociais.

Até agora, o processo judicial, como sistema social que é,  sempre operou pela via de acoplamentos com sistemas psíquicos. Com a chegada da tecnologia e dos agentes automatizados, o processo ganhou a possibilidade de valer-se de sistemas de outra natureza,  os sistemas técnicos, capazes também de lhe proporcionar os meios comunicacionais para os giros autopoiéticos. 

Por isso, pode-se afirmar que o processo, com a incorporação da tecnologia, ganhou um caráter híbrido, novo e diferente do que sempre existiu.  O processo judicial eletrônico é um sistema que se faz pela articulação de sistemas psíquicos e técnicos (algoritmos ou máquinas virtuais).

No caso da Justiça do Trabalho, o agente automatizado sistema (Pje-JT), de que fala persistentemente a resolução CSJT 136, acopla-se com os sistemas de consciência (humanos) para a geração do sistema judicial eletrônico, incumbindo-se ele, o tal sistema,  de inumeráveis papéis antes entregues somente a sistemas psíquicos. Para distribuir uma inicial, por exemplo, o advogado depende de uma interação reativa com o SEPAJ, o qual se  incumbe da identificação do advogado e da recepção da peça, fazendo, na sequência, a autuação e a distribuição (se necessária), além dos primeiros encaminhamentos do processo. Todo e qualquer retorno aos autos dependerá da intermediação desse sistema técnico.

2. Processo feito só por homens e processo feito por homens e máquinas (software): o encerramento operativo e o problema da causalidade


A afirmação de transformação da natureza do sistema processual, para classificá-lo como híbrido, advém da afirmada articulação de sistemas técnicos e de consciência. Dessa hibridez emergem características distintivas do novo processo que forçam a TGP a se repensar. Vive-se, na visão kuhniana, uma transformação de paradigma[1]?  De fato, são muitas as particularidades do novo ente processual que justificam essa ideia de natureza nova, híbrida, do processo.

A transformação da natureza, pelo acoplamento com sistemas técnicos, induz  alterações substanciais no processo.

A teoria do encerramento operativo, por exemplo, distingue sistemas técnicos e sistemas de sentido (psíquicos ou sociais), caracterizando os primeiros como sistemas causalmente fechados e os segundos como sistemas causalmente abertos[2].
Ao contrário dos sistemas técnicos, os sistemas psíquicos, até agora os únicos provedores do dinamismo operacional ao sistema processual,  " [...] têm a particularidade de poder estar referidos ao meio e de reproduzi-lo dentro de si mesmos sem que tenham de produzir efeitos causais."[3]
Causalmente abertos significa que das mesmas causas podem advir mesmos efeitos, efeitos diversos ou até nenhum efeito. Ou, ainda, que causas diversas podem produzir o mesmo efeito.

Com a hibridização do sistema processual, pela via do software (eSujeitos, agentes automatizados), o processo ganha trechos causalmente fechados (triviais, no linguajar de Foerster, que ligam causas e efeitos inescapavelmente) intercalados com segmentos operativos causalmente abertos.

Há quem diga que o sistema técnico é mero instrumento de outros sistemas psíquicos (os elaboradores) e que, portanto, não há mudança de natureza do processo. Eles esquecem que os sistemas psíquicos que elaboram o sistema técnico se manifestam, no processo, por meio de tais sistemas técnicos, determinísticos, causalmente fechados[4]. O meio altera a forma de manifestação, condicionando-a. A humanidade desaparece das operações entregues aos agentes automatizados (eSujeitos).   É válido, portanto, afirmar a transformação da natureza do processo, considerando-o híbrido quando feito de forma eletrônica, devendo-se levar em conta essa transformação nos esforços teóricos a respeito do processo.

Mesmo os SEPAJ atuais, ainda embrionários e pobres de incorporação tecnológica, já demonstram profundos efeitos sobre os operadores humanos, condicionando-lhes a atuação processual. Ou se faz a coisa do jeito que o SEPAJ quer ou não se tem processo.  Mas essa presença tecnológica tenderá a expandir-se, inexoravelmente, invadindo os espaços de prova (eProva), avaliação dos meios de prova coligidos diretamente ou por sistemas psíquicos, sugestão de soluções e, quiça, como alguns já sonham, avançando para o próprio âmbito decisório (processo em juiz!).
Portanto, melhor buscar um entendimento do que seja um agente automatizado e de que forma ele se apresenta no processo, quando comparado a um humano!



[1] “Outros problemas, mesmo muitos dos que eram anteriormente aceitos, passam a ser rejeitados como metafísicos ou como sendo parte de outra disciplina.” KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas.   5.ed. São Paulo:Perspectiva, 1997. p. 60. 
[2] À luz da análise de sistemas existe a classificação análoga dos sistemas em determinísticos e probabilísticos
[3] LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas.  Trad. de Ana Cristina Arantes. 2. Ed. Petrópolis:Vozes, 2010.  p.  106.
[4] Este aspecto é explorado nas discussões sobre a eNorma (norma tecnologia). Veja-se: PEREIRA, S. Tavares. Processo eletrônico, software,  norma tecnológica e o direito fundamental à transparência tecnológica. Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico.   Revista trabalhista: direito e processo,  São Paulo, n. 43, p. 54-72, jul.ago.set. 2012. p. 131 e seguintes.  O artigo pode ser obtido também em: https://docs.google.com/file/d/0B81pFflVFMJFRUh5SkE3LUxaNHc/edit.

domingo, 15 de junho de 2014

Norma tecnológica estréia na Copa: eNorma controla até o árbitro. FOI GOL!

Primeira validação de gol pelo agente automatizado da FIFA.
(Foto capturada de www.tecmundo.com.br)
Atenção senhores "operadores do Direito".

Dia 15 de junho de 2014, 16h00. Brasil. Porto Alegre/RS. Copa do mundo. Jogo França x Honduras. Resultado 3 x 0 para a França.

Aos 27 minutos do segundo tempo, Karim Benzema escora cruzamento da esquerda. O pé esquerdo do francês joga a bola de "chapa" em direção à trave esquerda do arqueiro hondurenho. Caprichosamente, a bola bate na trave e segue em linha paralela à linha do gol. Quase no outro pau, o goleiro, que já se encontrava no chão, pega a bola com a mão esquerda e deixa uma dúvida no ar. Entrou? Não entrou?  Uns juram que entrou. Outros que a bola não ultrapassou completamente a linha de gol.

O juiz, imediatamente, sem consultar ninguém, aponta o centro de campo. GOLLL! Obediente chefão do jogo, o juiz viu seu papel surrupiado por um agente automatizado e submeteu-se placidamente.

As imagens relembram coisas do passado. Técnico discute com técnico. Juiz fala com os jogadores, alguns atônitos. A torcida reclama, alega que não foi gol: "não entrou, não entrou!!!".
Não havia a quem apelar. Nem o juiz podia deixar de dar o gol. Foi gol e pronto!

Um agente automatizado incumbiu-se de, recebendo os elementos probatórios (vindos de sofisticados sensores), definir se fora gol ou não, ou seja, aplicar a regra. E, segundo ele, o decisor absoluto,  foi! Decisão irrecorrível. Nem mesmo o árbitro do jogo podia contradizê-lo. A brazuca havia cruzado inteiramente a linha de gol. Como discutir? Com quem dicutir? Cadê o decisor? Quem xingar?

Viveu-se um caminhar instantâneo do deôntico para o lógico-formal. Foi-se a emoção, a discussão, o talvez, o "ladrão", as longas conversas, os alimentos de infindáveis discussões, o molho do futebol, a dúvida.

Uma regra de futebol, expressa tecnologicamente, se autoaplicou e definiu: foi gol. Acabou! Sem choro nem vela.

A eNorma entrou em campo, exatamente como está invadindo os processos.

Isso merece muitos pensares dos juristas. Mas fica para outro post.





terça-feira, 26 de novembro de 2013

Dinamarco, o processo eletrônico e os agentes automatizados

Muitos têm afirmado ser necessário evoluir a teoria geral do processo para adequá-la ao processo eletrônico.  Será?
No capítulo XLVI, do título XIV, item 625, do segundo volume de suas Instituições, 3ª edição, de 2002,  Cândido Rangel Dinarmarco enfoca a questão do procedimento e dos atos processuais civis.
Com a habitual clareza, afirma: 
Procedimento é o conjunto ordenado dos atos mediante os quais, no processo, o juiz exerce a jurisdição e as partes a defe­sa de seus interesses. Sabido que o processo se compõe de uma relação entre pessoas e uma relação entre atos (Liebman) ..., procedimento é um dos fatores que o integram, dando expressão sistemática a seus atos.[1]

A leitura rápida do texto deixa passar despercebido um detalhe de muita importância. É necessário ler com atenção, e, além disso,  ler contemplando a realidade processual eletrônica que temos hoje e que, na época do escrito, em 2002, era muito diferente.  Talvez o leitor já tenha percebido a desatualização do texto, provocada pela nova realidade jurídico-processual. Ela é sutil, mas metamorfoseia, desde a base, a visão do ente processo.
Do que estou falando?  Daquele trechinho óbvio que, de tão claro, é lido às pressas, onde o autor afirma, sob influência de Liebman,  que o processo se compõe de “ relação entre pessoas e relação entre atos”.
Nas pp. 198-199, do mesmo volume 2, Dinamarco explica quais são as “pessoas”  implicadas na relação processual: partes, juiz, ministério público, advogados, auxiliares da Justiça  e, inclusive, fazendo ressalvas, as testemunhas.
Parece óbvio que definir um dos elementos da entidade complexa processo, como “relação entre pessoas” já não alcança a fenomenologia processual. Há agentes novos no pedaço. Agentes automatizados que se substituem às pessoas, em variados momentos do processo. Onde se encontrava uma pessoa, encontra-se um software, um programa de computador, com o qual, em interação reativa (conforme o conceito pedagógico da interação homem x máquina), os demais agentes processuais travam seus contatos.
Exemplo: o senhor sistema (eProc, Pje, Projudi) completa, em muitos vértices, a angularidade processual. Para começar, sem passar por ele, não nasce qualquer demanda. Logue-se. Do jeito que ele exige, claro.  Ele lhe vai dar acesso ou não. Entregue a petição, segundo as exigências dele, se não ele rejeita. E não tem papo. Rejeita mesmo. Faça os PDFs dentro dos limites que ele impõe.
Lembro-me da sentença que saiu em 39 minutos. Auxiliares de Justiça, juiz e assessores do tribunal tiveram de render-se a ele, o software, e arranjar um réu, para enganá-lo. Do contrário, não teriam conseguido formar o processo.
Portanto, dizer que o processo é relação entre pessoas e relação entre atos já não espelha a realidade processual.
Este novo agente processual é uma eNorma (norma tecnológica), uma norma auto-aplicadora que se substitui às pessoas. Portanto, dever-se-ia dizer, nos dias atuais, que, além do procedimento (relação entre atos), o processo é uma relação entre pessoas e agentes automatizados. 



[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3.ed. São Paulo:Malheiros, 2003. v.2. p. 453.