segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Bobbio, coatividade do direito e a norma tecnológica

No último post, tentei, pela via filosófica (Godofredo Telles Jr), aproximar o jurídico e o tecnológico (demonstrar o caráter híbrido da norma tecnológica) e  terminei dizendo que os juristas " [...] precisam entender o que significa dar poder jurídico a um ente normativo de características tecnológicas, destituído de tantas marcas peculiares do jurídico  [...] " (um agente automatizado). Num post, a abordagem é, ou deveria ser, sempre, rápida e objetiva. E isso complica um pouco a exposição.

Nas suas lições de filosofia do direito (1), no item 39 (p. 155 e seguintes),  Bobbio fala da formulação da teoria da coação, que ele qualifica de moderna (Kelsen e Ross), contrapondo à doutrina clássica, para a qual "o direito é um conjunto de normas que se fazem valer coativamente". E acrescenta que a nova concepção vê o direito como o conjunto de normas "que regulam o uso da força coativa".  Nessa reformulação de visão,  realça o papel de Ross,  dizendo-o "o autor que mais clara e conscientemente põe o dedo na ferida [...] " para evidenciar o significado novo que a teoria da coação assumiu. 

Segundo essa concepção, continua Bobbio, "o direito surge quando cessa [...] o exercício indiscriminado da força individual e se estabelecem as modalidades de exercício da força  [...]: quem, quando, como, quanto". 

Quem: estabelece-se o monopólio do uso da força pelo Estado e seus órgãos "e o exercício da força se qualifica como lícito ou ilícito segundo provenha do grupo monopolizador ou de outros sujeitos." (p. 158) [grifo meu].  
Quando:  a aplicação da norma somente se pode dar quando ocorrem as circunstâncias previstas pela lei;
Como: " as normas processuais regulam precisamente a modalidade através da qual se julga a aplicação da coação [...] ;
Quanto: " [...] isto tem o objetivo de reduzir ao mínimo o exercício arbitrário do poder [...] ", o que, em visões do pós-positivismo, traduz-se em promover a contextualização da norma, como condição de sua imparcialidade e legítima aplicação. 

Ora, considerando-se o caráter de autoaplicação das normas tecnológicas, é possível suscitar reflexões em relação às quatro modalidades de aplicação coativa do comando normativo. 

Em relação ao quem e ao aspecto de licitude/ilicitude correlato, é-se obrigado a considerar que deveria haver mecanismos transparentes para garantir que a aplicação, que é autoaplicação,  provenha de instâncias legitimadas para fixar os conteúdos codificados. O "auto", na realidade, tem um sentido oculto de "externalização" do quem  com o qual não se está habituado no processo (sabe-se, sempre, quem decidiu motivadamente!). 

Em relação ao quando,  práticas transparentes permitirão determinar que o código que se autoaplica contém, efetivamente, as condições legalmente estipuladas, numa interpretação emanada de órgãos legitimados para forjar a versão tecnológica do comando legal-textual. Além disso, parece que caberiam aqui, ainda, profundas reflexões  a partir das críticas ao dogma da completude do direito (2),  com o qual se trabalha, implicitamente, na automação. 

O como mereceria comentários longos, partindo de um entendimento profundo da autoaplicação (giro autopoiético do sistema) e da presença dos mecanismos de automação.

E o quanto, definitivamente, requer muitas considerações,  pois a ideia de contextualização (consideração das perístases da situação concreta examinada) parece que se perde no caminho. O trabalho de interpretação do texto e de determinação do conteúdo do comando tecnológico ocorre num nível de abstração equiparável ao do legislador. 

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(1) BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito.São Paulo:Ícone, 1995. 239p. 
(2) BOBBIO, Norberto. O positivismo...,  p. 207 e seguintes. Também: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília:Ed. Unb, 1999. p. 119.






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