sexta-feira, 26 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e marcos teóricos para seu estudo.


Muitos amigos me têm dito ser relevante, no desenvolvimento das reflexões sobre a norma tecnológica, o apontamento de um marco teórico.
Ocorre que, dependendo da tarefa assumida ao longo das lucubrações, um ou outro conjunto de diretrizes teóricas pode servir de baliza adequada. 

Hans Kelsen

Kelsen e sua teoria geral das normas é, sem dúvida, um marco primacial. Não se pode falar de norma sem pôr, em muitos momentos, como pano de fundo, o pensamento lógico-jurídico de Kelsen. Seu fundamento teórico é relevante, principalmente, para caracterizar o comando tecnológico como norma jurídica. Embora a constatação possa ser tomada como um axioma, pelas muitas evidências de sua existência,  é possível demonstrar que a norma tecnológica ostenta, em sua abstração, os elementos característicos da norma jurídica que Kelsen tão bem enunciou. Em termos ontológicos, portanto, Kelsen é, a meu ver, uma baliza imbatível. 

Hans Kelsen
Na sua Teoria geral das normas[1], no primeiro item do capítulo 1, o saudoso cientista diz que, com esse termo, se designa " [...] um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas."

Nas próximas quase 500 páginas da obra, Kelsen desdobra-se para esmiuçar esse ente jurídico, para o distinguir de outros tipos de normas (morais, lógicas) e para lhe dar os característicos próprios.  Mas, no meio dessa profusão de pensares, uma coisa fica assentada desde o item III do capítulo 1: a norma é o "sentido de um ato de vontade."[2] Como a norma dá a entender a alguém (o destinatário) que " alguma coisa deve ser ou acontecer", ela assume uma expressão linguística de imperativo ou uma proposição de dever-ser.  
Acompanhar o desenvolvimento subseqüente do pensamento kelseniano tendo, sob o olhar, o ente norma tecnológica, é intrigante e  desafiador. Mas evidencia que, naquele comando codificado imerso num sistema eletrônico de processamento de ações judiciais, há, sem dúvida, uma norma ou um “sentido de um ato de vontade”.

Klaus Günther

Se, por outro lado, se quiser caminhar na direção oposta, na busca de diferenciais desse ente cuja natureza de norma ficou assentada, então outros pensadores podem servir de esteio seguro para o esforço teórico. A distinção paradigmática que Klaus Günther[3] faz, por exemplo,  entre fundamentação e aplicação de norma, na sua tese de doutoramento, oferece subsídios importantíssimos para demonstrar que a norma tecnológica é norma jurídica, mas uma norma diferente. Notadamente na dimensão da aplicação, a norma tecnológica é absolutamente inovadora. Como norma autoaplicadora, ela espanca do cenário da aplicação aspectos até agora considerados relevantes como os ligados à contextualização  e à não vinculação, além de provocar um deslocamento, na linha do tempo, daquele momento crucial em que o aplicador (que desaparece!) deve definir o “sentido do ato de vontade” (a norma) com o qual será armado o computador. 

Referenciais teórico-tecnológicos

Só é possível entender com clareza esse ente, entretanto, se sua natureza mista, jurídico-tecnológica, ficar evidenciada. Falar em norma autoaplicadora é referir-se àquilo que as ciências tecnológicas denominam de agente automatizado.   Portanto, as teorias ligadas ao desenvolvimento de sistemas precisam ser acionadas - um imenso desafio para os juristas, exatamente assim como as teorias jurídicas são uma provação para os tecnólogos.  Os juristas precisam entender como funciona um programa de computador - não é necessário mergulhar na prática tecnológica (escrever ifs, whiles...), mas é necessário, ao menos, ir ao  nível em que os sociólogos sistêmicos chegaram.  Luhmann, por exemplo, fala de programa com uma imensa propriedade, embora num nível de abstração elevado. O filósofo Edgar Morin, idem.  

Teoria dos sistemas
Niklas Luhmann

Aliás, a teoria dos sistemas, em muitos e variados momentos, precisa ser acionada. Entropia, neguentropia, dupla contingência, tempo, sentido, comunicação,  clausura de operação, máquina trivial e não trivial, heteroreferência, autoreferência, interpenetração, conexão, autopoiese, estrutura, auto-organização  são muitos dos inumeráveis conceitos da teoria geral dos sistemas sociais, de viés luhmanniano[4],  que exigem reflexão para bem entender e teorizar os sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais - esse amontoado de diretivas tecnológicas, muitas das quais portadoras de conteúdos jurídicos estritos.

Teoria geral do processo

E, é claro, a nossa sempre necessária e,  agora muito pressionada, TGP.

Enfim, esse ente multifacetado- a norma tecnológica - precisa ser estudado à luz de muitos holofotes teóricos.  



[1] KELSEN, Hans. Teoria geral das normas.  Tradução de José Florentino Duarte.  Porto Alegre:Fabris, 1986.  509p.
[2] KELSEN, Hans. Teoria...,, p. 3.
[3] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[4] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di uma teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna:Società editrice il Mulino,  1990. 761p.  Para uma aproximação mais conceitual, é muito útil a obra de meados da década de 90: LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoría de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.  


Nenhum comentário:

Postar um comentário